Grécia. - a.C.
Narrador.
Um silêncio sepulcral tomou conta das três pessoas na conversa. Zeus encarava Hades, que desconfiado, não tirava os olhos de Afrodite, que via em sua mente diversos fios do destino tanto de Hades quanto da pequena Perséfone, e sempre em algum momento os dois fios se entrelaçavam, mas acabavam sendo rompidos e Afrodite não conseguia ver o motivo do rompimento.
- Você só pode estar me tomando por um idiota, Afrodite. – resmungou Hades para a deusa da beleza, que balançou a cabeça saindo de suas visões e encarando o deus dos mortos.
- Eu não estou lhe tomando por um idiota, Hades. Estou lhe contando o que eu vi. Já vi diversos destinos amorosos seus e de Perséfone, e por mais que ambos possam arrumar outros pretendentes, no final vocês ficam juntos. – ela não contou sobre nenhum dos milhares dos rompimentos.
- Guarde suas maldições amorosas para os mortais! – rebateu entre os dentes, e bateu seu cetro no chão de mármore e uma nuvem negra cobriu seu corpo e ele foi teletransportado para a entrada no mundo inferior.
- Pare de agir como um idiota! – gritou Afrodite vindo atrás dele, antes que Hades tivesse a chance de se esconder nas profundezas do mundo inferior. – A eras você resmunga que ninguém se interessaria por você, e quando surge alguém é assim que você reage?! –
- Ela é uma criança, Afrodite! Não é só porque ela me deu a porcaria de uma flor aos seis anos, que isso signifique que ela se interessaria por mim quando adulta. – rosnou para ela. – E de qualquer forma, jamais condenaria qualquer mulher a este inferno! –
- Você, Hades, vive dizendo que eu amaldiçoou os mortais com o amor... – Afrodite riu. – O Amor não é uma maldição, é uma benção. Mas como é dessa forma que você enxerga... Sinto muito em lhe dizer Hades, deus dos mortos, mas você será amaldiçoado da próxima vez que por os olhos em Perséfone. E eu e nem Eros faremos nada, você irá fazer isso por conta própria. –
- Então eu jamais colocarei meus olhos em Perséfone, novamente! –
- Boa sorte! – e ainda rindo, Afrodite voltou para o monte Olimpo.
Anos se passaram sem que Hades colocasse os pés para fora do mundo dos mortos mais uma vez, não havia um único deus que chegasse próximo a sua morada, sem que lhe provocassem sobre Perséfone, de que ele evitava sair de seu “esconderijo” temendo encontrá-la. Contudo, ninguém é de ferro e ele não conseguiu ficar muito tempo no mundo inferior, e sentia que o último lugar em que tombaria com alguém seria em uma aldeia longínqua, a qual havia sido dizimada pelo fogo, quase que por completo, ele aproveitaria e colheria as almas dos mortos.
Hades andava pelos campos queimados, alguns lugares ainda tinham focos de fogo e os mortais que haviam sobrado corriam com baldes d’água para apaga-los. Não havia sobrevivido quase ninguém, e ele sabia que dos sobreviventes alguns morreriam em poucos dias devido a quantidade de fumaça que respiravam. Ele andava pelos campos, desviando dos cadáveres e vendo como suas almas estavam, algumas sentadas resignadas próximos aos seus corpos, outras não haviam compreendido que tinham falecido e tentavam gritar com os vivos sem sucesso. E no final da aldeia, Hades viu um ser iluminado, não era uma alma desencarnada e tampouco era um sobrevivente do fogo, suas vestes brancas estavam impecáveis e não havia nenhum misero vestígio de fuligem em seu corpo, mas Hades sabia que aquela mulher não era uma mortal qualquer, muitos passavam por ela, sem nem ao menos a vê-la.
- Quem é você? E o que faz aqui? – perguntou ao se aproximar dela, que se virou para ele com um sorriso fraco em seus lábios.
Quando a jovem se virou de frente para o deus dos mortos, o homem sentiu como se um soco fosse dado em seu estomago e o deixasse com falta de ar, isso quer dizer, se um deus pudesse sentir falta de ar. Suas mãos suavam um pouco e se ele não segurasse com força o seu cetro ele já teria ido ao chão. Ele não conseguia entender o motivo de ele estar tendo essas emoções de mortais.
- Oh... O senhor é Hades, deus dos mortos! – comentou, sem responder-lhe nenhuma das duas perguntas.
- Sou. E você? Quem é e o que faz aqui? – questionou já impaciente e sem compreender o porque das novas emoções que sentia se aflorarem cada segundo mais.
- Sou Perséfone. – respondeu e ele engoliu em seco, sentindo seu coração perder uma batida e logo em seguida começar a bater com força. – Eu... Eu soube do incêndio e... – suspirou olhando em volta com um semblante de tristeza em seus olhos. – E eu vim tentar ajudar de algum jeito, já que mais ninguém lá em cima se mexeu. –
- Sabes que caso quiseres ajudar, podes usar sua forma mortal e... –
- Eu sei. – interrompeu-o. – Mas não sou muito boa com trabalhos manuais. – brincou. – Pensei que ajudaria melhor com comida... –
- És a deusa da primavera, perdoe-me, mas flores não serão uteis. –
- Eu sei... – disse meio que sem jeito. – Por isso que eu peguei algumas sementes de cereais da cornucópia de minha mãe... Sem ela saber! – comentou olhando para o chão, ela sabia perfeitamente bem que aquele homem à sua frente era irmão de seus pais, além de ser um dos originais, mesmo ele não ocupando um trono do olimpo, ele podia entregar a jovem a mãe.
- Então, sugiro que ou plante rápido ou assuma sua forma mortal antes que sua mãe lhe ache. Ela não ficará muito feliz ao descobrir que a própria filha surrupiou sementes de sua cornucópia. – ironizou e Perséfone bufou.
- Como se o fato de sumirem algumas sementes mudaria o fio da vida das moiras. – resmungou. – Bom, então, acredito que o senhor tenha coisas mais importantes para fazer e eu preciso fazer o que eu vim fazer antes de minha mãe descubra que eu deixei o olimpo. – suspirou a jovem deusa. – Eu não sei o motivo dela não gostar que eu desça. – ela levantou os olhos do chão queimado e olhou para o deus da morte. – Bom, com licença. – e sorrindo ela se afastou na direção de um pequeno campo onde o fogo não tinha queimado e se pôs a plantar as sementes que havia roubado da mãe.
Hades voltou a recolher as almas, mas a cada meio segundo ele desviava os olhos para a deusa que mexia na terra, ele estava mais interessado no que ela fazia do que no seu próprio trabalho. A vontade que ele sentia era de caminhar até onde Perséfone estava e ficar próximo a ela, sem falar nada, ele sentia que não precisaria falar nada, ele só queria ficar perto dela, ficar próximo a luz que ela irradiava.
Ele não sabia em qual momento tinha sido, mas ao olhar para o campo novamente pela milionésima vez, ele o encontrou vazio, contudo, cheio de trigos crescidos. Quando notou que Perséfone não estava mais ali ele sentiu um vazio em seu peito, como se algo tivesse sido arrancado de dentro dele. Hades nem terminou de recolher as almas e voltou em um rompante para o seu castelo no submundo, agarrando-se no beiral da janela de seu quarto que tinha uma vista terrível para o campo de Asfódelos.
Mesmo não lhe fazendo falta, ele buscava o ar apressado, de forma arfante, e mesmo assim sentia que o ar não entrava em seus pulmões. Ele não entendia, ele não conseguia compreender como isso poderia estar acontecendo, o tanto que ele havia repudiado a ideia de colocar os olhos em Perséfone, e agora, o que ele mais queria era vê-la, mesmo que de longe.
- Doí, não é? – dando um sobressalto, assustou-se ele ao ouvir a voz de Afrodite bem próxima dele, bem próxima até, já que ela estava sentada no beiral da janela ao lado dele.
- Como ousa? – ele queria soar irritado como sempre, mas ele não conseguiu. – Como se atreve a entrar em meus aposentos sem minha permissão? –
- Queria ver a sua cara ao sentir que está apaixonado. – respondeu sorrindo. – Doí não doí? – perguntou sorrindo amplamente.
- Por que fez isso comigo? – questionou desesperado.
- Eu? – ela riu balançando seu longo e loiro cabelo cacheado. – Eu lhe disse que você faria isso sozinho. Eu e nem Eros fizemos nada, vocês se encontraram no completo acaso. –
- Como ousa falar que não fez nada? És a deusa do amor, como ousa falar que você não fez nada? As pessoas só se apaixonam por sua causa. –
- Não necessariamente. – respondeu dando um pequeno salto na direção do chão e apoiou os braços no beiral da janela, onde estava sentada a poucos segundos e parando ao lado de Hades. – Eu ajudo algumas pessoas a ficarem juntas, almas destinadas a ficarem juntas é por conta das moiras, mesmo eu levando o crédito. –
- Almas destinadas a ficarem juntas? – perguntou ele.
- Eu lhe disse. Você e Perséfone ficarão juntos até o fim dos tempos, e se bobear até mesmo depois. Não vai ser fácil, e será bem doloroso, mas vocês sempre estarão ligados um ao outro. –
- Como assim não será fácil e será doloroso? –
- Achas mesmo que Deméter permitirá de bom grado? – questionou com a sobrancelha arqueada. – Mas não ache que ela implicará com você por ser o deus da morte. Deméter implica com qualquer homem que se aproxime da filha. Apolo, Ares, Dionísio e Hermes já a cortejaram e Deméter praticamente colocou todos para correr. E ela sabe do que eu vi sobre vocês dois e sabe que Zeus abençou essa união que nem existir existe. E não ficou nem um pouco feliz. –
- Não imagino o contrário. Olha o lugar para onde ela viria. – Afrodite olhou para frente para o campo de Asfódelos.
- Bom, sou obrigada a concordar, não é uma vista bonita. Talvez se tivesse vista para os campos Elísios seria melhor. Ou então, pensando melhor, crie um jardim para ela. –
- Estamos no mundo inferior, Afrodite, nenhuma planta brota aqui. –
- Você é o deus do submundo, você dá a vida e tira de quem você quiser. Não apenas de pessoas. Sabes disso. Aqui você domina tudo! –
- Mesmo se eu transformasse esse lugar todo em um jardim, ela aceitaria vir para cá. Não vou raptá-la ou algo do tipo, se é o que está passando pela sua cabeça. Ela teria que vir por livre e espontânea vontade. E nós sabemos que ela jamais faria. Ela jamais trocaria o Olimpo por esse inferno. –
- Ela odeia o Olimpo! – Hades virou o rosto para encarar a sobrinha, que já tinha os olhos azuis presos no tio. – Deméter não a deixa dar meio passo sem perguntar para onde ela vai. Ela odeia aquele lugar. Já cansei de encobri-la para que ela pudesse respirar no mundo dos mortais. –
- E Zeus? – Afrodite bufou.
- Você está tempo demais aqui embaixo, tio. – ela balançou a cabeça rindo. – Zeus está se fantasiando de um velho para treinar o novo semideus favorito dele. Hera está furiosa. Ele passa muitas luas sem pisar no Olimpo. –
- Por que isso dói tanto, Afrodite? –
- Porque vocês dois estão predestinados a ficarem juntos e não estão. Essa dor só vai passar quando vocês ficarem juntos de vez. Já disse. A sua linha da vida está completamente enroscada com a de Perséfone, pelo fim dos tempos. As moiras podem confirmar isso, caso não acredite em mim. – ela suspirou. – Preciso subir. Deméter não é minha mãe, mas se ela descobrir que estou apoiando os dois, ela me mata! – brincou rindo enquanto se afastava da janela.
- Afrodite. – ele a chamou antes que ela tivesse a chance de se teletransportar para o Olimpo.
- Sim? –
- Da próxima vez que aparecer em meu quarto sem permissão quem vai lhe matar sou eu! –
- Até parece! – ela riu. – A partir de hoje você não será o mesmo Hades de sempre de quem o povo tem medo. Ela nem sabe, mas já lhe colocou as rédeas! – ainda rindo ela deixou o quarto de Hades.
Parado alguns minutos no mesmo lugar para o campo dos Asfódelos, ele tamborilou os dedos no beiral da janela pensando se iria ou não tirar satisfação com as moiras, perdido olhando para os dedos longos e branco batendo na pedra preta de seu castelo, ao se dar por si estava no tempo das moiras, com um de seus servos dando um pulo para trás ao se ver frente a frente com o deus da morte. Hades não teve tempo de falar nada antes dele sair correndo gritando pelo templo que o deus da morte estava no recinto.
Hades não esperou pela resposta das três mulheres e simplesmente caminhou até onde elas ficavam tecendo o fio da vida. A sala onde elas ficavam parecia como a toca de uma aranha gigante, com fios soltos para cima e para baixo, alguns novelos no chão com a ponta já cortada representava a vida dos mortais mortos. Cada um estava em seus intermináveis afazeres, elas jamais tiravam as mãos dos fios. Cloto estava sentada em frente a uma roca com seu fuso na mão, girando o fio da vida de quem nascia, era um trabalho muito rápido para dar conta de cada recém-nascido no território grego, cada um com seu próprio fuso. Láquesis media o fio, e por mais que o mortal ou o deus tivesse apenas meio minuto de vida, ela já sabia o tamanho do fio, quanto maior o fio, maior seriam os anos de vida. E Átropos, sentada em um banquinho, com uma tesoura em mãos, era ela quem cortava o fio da vida, era ela quem decidia a morte de cada pessoa.
- O que quer Hades? – Átropos, a mais velha, a anciã, perguntou com a voz falhada. – Já tem muitas eras que um olimpiano pisa aqui. –
- Tecnicamente eu não sou um olimpiano. – respondeu ele caminhando para perto delas, andando com cuidado para não pisar em nenhum dos fios que tinha no chão.
- De qualquer forma, o que quer? –
- Nós sabemos o que ele quer, Átropos. – Láquesis comentou rindo. – Nós sabíamos que ele viria aqui saber sobre sua vida com Perséfone. –
- Então o que Afrodite me disse é real? –
- O que? Que você e Perséfone estão predestinados? – Láquesis, a do meio perguntou.
- Não brinque com a cabeça desse pobre homem, Láquesis. – Cloto entrou na conversa. – Ele pode ser um deus, mas continua sendo um homem, e como todo homem, tem alguém predestinado. A sua alma gêmea. Todo mortal e todo deus têm uma, infelizmente, não são todos que irão se encontrar. -
- Por quê? –
- Por que nascem em épocas diferentes, lugares diferentes, o fio da vida é cortado antes de se encontrarem, e as vezes, por mais que sejam almas gêmeas, pode ser que elas estejam predestinadas a nunca se encontrarem. – Cloto contava enquanto continuava a tecer os fios. – Contudo, essa não é a sua história. A sua história é se encontrar com a sua alma gêmea, vocês ficaram juntos por um tempo e depois serão necessárias se passar diversas eras antes de conseguirem ficar juntos novamente. E você sofrerá durante todas essas eras. –
- Por que? –
- Deméter! Irá fazer o possível e o impossível para deixar vocês separados. –
- Como e por que? – Láquesis riu com o desespero na voz de Hades.
- O deus dos mortos está desesperado? – brincou e Cloto lhe acompanhou no riso e Hades sentiu a ira tomando conta de seu corpo.
- Parem com isso. Vocês duas parecem duas crianças. – Átropos cortou as duas, tentando aplacar a ira de Hades. – E você, Hades, sabe muito bem que nós não revelamos o futuro das pessoas. –
- Eu posso... –
- Você não pode nada. – ela o cortou. – Lembre-se todos os deuses estão abaixo de nós. – ele respirou fundo tentando se acalmar, ele sabia muito bem disso, passou a vida ouvindo Zeus reclamar disso. – Não pense em crescer aqui dentro, ainda mais quando eu estou com o seu fio em mãos. – ameaçou erguendo um fio e Hades viu que no fio de sua vida se enrolava outro. Ele sabia que aquele fio que se enrolava, como uma serpente, ao seu, era o fio da vida de Perséfone, e acabou dando uma arfada ao ver que do fio dos dois surgiam mais dois, ele sabia o que aquilo significava. – Você já teve a sua resposta. Até mais do que merecia descobrir se soube ler direito, agora, fora! –
Ele olhou mais uma vez para aqueles quatro fios antes de se virar e ir embora. Ele não havia gostado nem um pouco do fato do que Afrodite ter dito ser verdade. Ele não queria que Perséfone ficasse com ele apenas porque três mulheres haviam decido isso, não eram nenhumas das três quem deveriam escolher isso e sim a própria Perséfone. Ele se afastaria de novo, era isso o que ela achava que era o certo
Mas ele não conseguiu ficar longe por muito tempo. Na verdade, não conseguiu ficar longe nem por dois dias, era doloroso demais não saber onde ela estava ou como ela estava. E como um perfeito louco, ele passou a “perseguir” Perséfone, sempre longe, ninguém conseguia vê-lo e ele apenas olhava, a dor continuava ali, mas era mais fraca. Perséfone sempre estava sozinha, algumas vezes outras deusas ou ninfas estavam por perto, mas nenhuma sentiu a presença do deus da morte, ou então nenhuma delas ligou para a presença do mesmo.
Hades sentia seu coração se aquecer a cada sorriso de Perséfone, ou a cada vez que ela enchia um campo de flores, ele que jamais gostou de flores, passou a amar ver a jovem deusa plantando e florindo. Ele faria qualquer coisa para vê-la sorrindo, e a cada dia que passava sentia mais ainda em seu amago que não poderia condena-la a uma eternidade no inferno.
Varias luas haviam se passado, alguns anos haviam se passado, e ele continuava apenas a observa-la, e chegou até a trocar algumas poucas palavras com a mesma em umas confraternizações no Olimpo, já que ele passou a comparecer a todos os convites dos seus irmãos, ele odiava essas confraternizações, mas ele queria apenas ficar perto de Perséfone.
Hoje era mais um dia que ele a observava de longe em um campo, dessa vez ela estava próxima a um lago junto com as ninfas da água e Hades escondido entre as sombras das árvores. Um barulho alto de um cervo vindo da floresta atrás dele, lhe fez desviar a atenção da bela morena e ao olhar para frente novamente, onde ela estava, encontrou com a mesma a poucos passos a sua frente com um sorriso divertido nos lábios. Hades sentiu o estomago revirar e o coração acelerar, ao mesmo tempo em que as mãos suavam e tremiam e ele precisou escondê-las atrás do próprio corpo. Hades achou que fosse ver um olhar de repulsa nos olhos castanhos da deusa, mas pelo contrário, tinha uma expressão amorosa e carinhosa neles, e o sorriso divertido de seus lábios levemente carnudos e avermelhados estava estampado em seus olhos.
- Perdeu algo? – perguntou ela sorrindo amplamente. Mil e uma respostas passaram pela cabeça do deus, todavia, ele não sabia ao certo o que tinha visto nos olhos de Perséfone que fez perguntar a coisa menos óbvia.
- Afrodite? – ela riu.
- Sim. Afrodite me contou que o senhor fica me observado. Queria saber o porquê. – por um momento ele temeu ter ficado corado igual a um mortal quando ficava constrangido.
- É complicado. – respondeu ele simplesmente.
- O que é complicado? Que os nossos fios da vida estão entrelaçados? –
- Como você sabe? –
- Afrodite! – respondeu como se fosse o óbvio. – Ela me levou até as moiras. – Perséfone fez uma careta. – Acho que Láquesis não gostou muito de mim. – deu de ombros. – Qualquer coisa que o senhor tenha para me falar, Afrodite já disse. –
- Então concorda que eu deveria ficar longe. –
- Não. – ele piscou os olhos confuso. – O senhor disse a Afrodite que quem teria que escolher era eu. – ele assentiu. – Mas como eu posso escolher, se eu não tenho opções? Para eu escolher ficar com o senhor ou não, eu deveria ter o mínimo de contato possível, não? – ela não esperou que ele respondesse. – E bom, não é com o senhor escondido na escuridão que isso vai acontecer. –
- Quer a minha companhia? – perguntou ele sem entender e ela riu.
- Suponho que seja melhor do que as ninfas. –
- E a sua mãe? –
- Eu não sei onde está minha mãe. – ela deu de ombros. – Minha mãe disse algo como semear em Creta ou algo desse tipo. Admito que não prestei a devida atenção. – ele riu. – Deverias sorrir mais. –
- Acho que a primeira vez que esbocei um sorriso foi quando me destes uma flor. – admitiu. – Não sei se você se lembra. –
- Lembro! Foi um jacinto. – ele concordou. – Então, para que sorrias mais... – ela estalou os dedos da mão direita e um ramo de acônito surgiu e ela esticou a ele. – Espero que isso não pareça estranho. – ela ficou levemente constrangida.
- Nem um pouco. – respondeu ele pegando a flor de sua mão e fazendo seu sorriso se abrir mais ainda.
Os dias foram se passado e quase todos os dias os dois se encontravam e em cada encontro Perséfone lhe entregava uma flor, apenas para lhe fazê-lo sorrir. Eles não faziam nada, apenas ficavam deitados na relva da entrada da floresta, quer dizer, Perséfone deitava na relva debaixo do sol, enquanto ele ficava sentado debaixo das sombras. Eles conversavam sobre tudo e nada ao mesmo tempo, em nenhum momento eles tocavam no assunto deles dois juntos.
- Eu estive pensando em uma coisa. – começou ela após meses de conversas. Ela deitou-se de bruços, e apoiando a cabeça na mão, que tinha o cotovelo apoiado no chão. O vestido fino e branco de Perséfone havia se levantado um pouco e uma parte de suas pernas estavam descobertas e Hades evitava olhar para lá, mesmo seus olhos o traindo volta e meia.
- No que? – ele agora deitava no chão ao lado dela, contudo ainda na sombra, ele passou a fazer isso ao sentir o cheiro de flores que emanava dela.
- Você diz que não quer me condenar a vida no submundo. – ele assentiu. – Mas eu não conheço o submundo. –
- Nem queira. – respondeu ele.
- Mas e se eu escolher ficar com você? – perguntou e ele a encarou em choque. – Eu viverei no Olimpo e você no submundo e nos veremos poucas horas por dia igual está sendo agora? –
- Perséfone... – disse carinhosamente, ele adorava o jeito que o nome dela saia de sua boca. – Sua mãe me mata se eu te levar ao inferno. –
- Ela não precisa saber! Ela ainda não voltou de Creta. E de qualquer forma, Afrodite me cobre. – deu de ombros.
- Serei bem sincero com você, Perséfone. Eu não consigo te imaginar lá. Imaginar alguém cheia de vida naquele lugar morto. –
- Quem tem que decidir sou eu e não você. –
- Tem certeza? Até onde eu saiba só entra em meus domínios quem eu permitir. – respondeu e ela bufou audivelmente, e ignorando-o ela virou-se de barriga para cima de novo e fechou os olhos sentindo o toque quente do sol em seu rosto. - Não vai se estressar por causa disso não, não é? – perguntou ele e ela não o respondeu. Continuou deitada com o rosto sereno e com as mãos apoiadas sobre a barriga. Ele deitou de lado vendo-a tão tranquila e relaxada naquela relva verde, ele nunca conseguiria imagina-la assim no submundo, e ele também sabia, que caso ela o escolhesse, ela não pisaria novamente aqui em cima.
Pelos deuses como aquela mulher é bonita, era a única coisa que ele conseguia pensar enquanto a observava, tão serena naquela relva verde, o tecido de linho fino se moldava perfeitamente em seu corpo, emoldurando cada misero pedaço de seu corpo, que havia sido delicadamente desenhado pelo melhor dos artistas. Por um impulso, ele saiu das sombras e se sentou ao lado do corpo de Perséfone, ela parecia estar dormindo profundamente, ela não havia mexido um único musculo quando o corpo do deus da morte criou uma sobra em seu rosto, tampando o sol.
Hades hesitou algumas vezes até tocar no rosto delicado da deusa da primavera, ele sentia o calor irradiando do corpo dela e não queria toca-la com sua mão fria. As pontas de seus dedos estavam a pouquíssimos milímetros de distância do rosto de Perséfone, e ele continuava hesitando em toca-la, ele estava em uma luta interna de se deveria toca-la ou não, e como ele não decidia se iria toca-la ou não, quem decidiu foi ela, que sentia a mão de Hades pairando próxima ao seu rosto, e virou o mesmo deitando na mão do homem.
Hades sentiu sua mão queimando quando o rosto de Perséfone repousou ali. A palma de sua mão queimava e formigava, e mesmo assim, era uma sensação gostosa. Ele se permitiu acariciar a bochecha da jovem com seu polegar, intensificando mais ainda o formigamento em sua mão. Perséfone continuava com os olhos fechados, apenas sentindo o carinho feito por Hades.
Ele continuava hesitando, ele não sabia se deveria ou não fazer o que mais desejava, e munindo-se de coragem, ele abaixou a coluna sobre o corpo da jovem e roçou seus lábios ao dela. Ele queria beija-la, mas não sabia se deveria ou não, e principalmente se ela queria ou não, portanto apenas encostou o nariz ao dela inalando o cheiro de flores, que antes ele odiava e agora ele ansiava cada vez mais para sentir esse cheiro. Como ele não a beijou novamente, Perséfone levantou um pouco a cabeça e uniu seus lábios aos dele enquanto sua mão ia até a nuca dele puxando-o para perto dela.
Perséfone entreabriu um pouco os lábios e roçou a ponta da língua pelos lábios frios de Hades, que não conseguiu mais se conter e aprofundou o beijo sentindo sua língua se entrelaçando a dela. Os dedos de Perséfone se enrolavam nos cabelos negros do homem que estava com a metade do corpo sobre o dela, ao mesmo tempo em que Hades subiu com a mão, que estava repousada no rosto dela, para os longos e ondulados cabelos castanhos dela, sentindo o cheiro de flores saindo mais forte deles.
O corpo de Hades estava quase todo deitando sobre o corpo de Perséfone, que usando a pouca força que tinha, e se aproveitando do fato de que ele estava a sua completa mercê, ela o virou, deitando-o de costas no chão e deitando-se sobre ele. Com o braço livre, Hades abraçou a fina e delgada cintura da moça, abraçando-a fortemente contra si, prendendo-a naquele abraço e não querendo solta-la nunca mais. Ele havia experimentado a sensação de ter Perséfone em seus braços e não queria mais solta-la.
Um raio rasgou o céu azul fazendo com que os dois se assustassem e que, principalmente, Perséfone se afastar e se sentar na relva olhando para cima enquanto buscava o ar pela boca. Ela olhou por alguns segundos para o céu azul antes de virar o rosto para Hades que continuava deitado no chão, tão arfante quanto ela e com o rosto levemente corado, que a fez rir sem motivo, e ele também a acompanhou no riso, que foi rapidamente interrompido, com ela deitando em cima dele e unindo os lábios aos dele de novo.
- Eu preciso ir. – ela falou contra os seus lábios. – Nos vemos na próxima lua? –
- Tanto tempo assim, por quê? – ela riu.
- Meu pai diz que eu estou lhe atrapalhando em seu trabalho e que caso o submundo vire um pandemônio a culpa será toda minha. –
- Zeus sabe que você está aqui comigo? – ela assentiu. – Achei que ele ainda estivesse com o tal de Perseu. –
- Bom, está. Mas está dividindo o tempo com o semideus e em manter minha mãe em Creta. – admitiu rindo e ele a acompanhou. – Eu preciso ir. Lhe espero aqui na próxima lua. – ela uniu seus lábios aos dele mais uma vez antes de desaparecer.
Um sorriso bobo e idiota se encontrava no rosto de Hades quando o mesmo se encontrou sozinho. Ele ainda sentia um cheiro forte de flores perto dele, ele não sabia se o cheiro havia impregnado em sua roupa ou... Ele descobriu de onde vinha o cheiro forte de flores, antes o campo onde ele estava deitado que era pura relva, agora se encontrava cheio de pequenas flores alaranjadas em formato de estrela, ele não lembrava de ter visto aquela flor antes.
- Oh que bonitinho, os dois estão tão apaixonados. – Afrodite apareceu a alguns passos a sua frente.
- Você sempre aparece quando ninguém te chama, não é mesmo? –
- Admiti que está apaixonado, porque eu sei que ela está. – respondeu sentando-se na relva algo florida. –
- Por que acha que ela está apaixonada? –
- Olhe ao seu redor. Olhe as flores que brotaram. –
- O que tem? –
- São Ásteres. – Hades ergueu a sobrancelha sem entender nada. – Homens. – bufou. – A flor Áster é um símbolo meu, ou seja, um símbolo do amor! Os mortais consideram dar uma flor de áster como uma prova de amor. E bom, ela floriu um campo para você. Quer uma prova melhor do que essa? –
Deixando essa ideia no ar, Afrodite sumiu deixando Hades sozinho. Com aquilo em mente, ele permaneceu mais um tempo naquele pequeno pedaço de campo, agora florido, pelo menos até escurecer, quando ele voltou para a escuridão de seu castelo no mundo inferior. Ele não conseguia parar de pensar em Perséfone, no beijo e principalmente no que Afrodite havia dito sobre ela estar apaixonada. O cheiro de flores estava preso em sua cabeça, e ele sabia dentro de si de não conseguiria e tão pouco queria passar mais um único dia sem ter Perséfone ao seu lado e em seus braços.
Os dias se passaram e finalmente chegou o dia em que ele havia combinado de se reencontrar com Perséfone. Quando ele chegou no lugar marcado de sempre, no meio das sombras, ela já estava ali, de costas para a escuridão da floresta, ela estava distraída enquanto acariciava a cabeça de um coelho cinza, deixando seu cetro apoiado em uma árvore, ele tentou se aproximar pé ante pé dela, em completo silêncio.
- Eu sei que você está aí. – falou ela enquanto continuava a acariciar a cabeça do coelho.
- Como sabia que eu estava aqui? – perguntou se sentando atrás da jovem.
- Eu senti o seu cheiro. – respondeu virando a cabeça na direção de Hades.
- E qual é o meu cheiro? –
- Enxofre. – respondeu rindo. – Eu gosto! – deu de ombros e aproximou um pouco mais o corpo do dele e beijou-lhe delicadamente os lábios. – Para não perder o costume. – brincou esticando um áster rosa na direção do deus da morte que prontamente aceitou, ele não sabia se Afrodite havia contado a ela o fato de que ele sabia da intenção de tal flor, contudo, ele também não falou nada e apenas aceitou a flor, e como sempre, prendia-a na orelha da jovem que sorria amorosamente para ele.
- O que você vai fazer amanhã? – perguntou ele quando ela soltou o coelho que deitou próximo aos pés da deusa.
- Nada. Por quê? – ele suspirou.
- Quer conhecer o submundo? – ela piscou os olhos castanhos algumas vezes sem acreditar muito no que ele havia dito.
- Perdão? –
- Eu perguntei se quer conhecer o submundo. –
- Achei que não me queria lá embaixo. – comentou virando o corpo um pouco na direção dele.
- Eu disse que eu não conseguia ver um ser de luz lá embaixo. –
- E o que lhe fez mudar de ideia? – retrucou e ele simplesmente lhe acariciou a bochecha.
- Eu não aguento mais ficar longe de você! – admitiu e aproximou mais ainda o corpo do dela. – Odeio ter que admitir, mas Afrodite estava certa. – prevendo o que ele diria, Perséfone sorriu amplamente mais uma vez. – Eu não sei como, mas eu estou completamente apaixonado por você. – ele segurou o delicado rosto da jovem com as duas mãos. – Como a morte pode amar alguém? – suspirou roçando o nariz ao dela.
- Eu te amo. – sussurrou ela, fazendo com que o coração de Hades batesse rápido e animado antes de unir os lábios aos dela.